terça-feira, 17 de novembro de 2009

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Megaliths and rock art

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Gente de Pedra: uma metáfora amazónica
Manuel Calado

Resumo:
Com base na comparação entre os megalitos de Calçoene e os monumentos megalíticos europeus, pretende-se elencar as principais semelhanças e diferenças, numa perspetiva centrada na própria dinâmica da pesquisa e tendo em vista a discussão de paradigmas interpretativos referentes a duas tradições de pesquisa relativamente autónomas.
O objetivo assumido é o de delinear estratégias de pesquisa compatíveis, ultrapassando alguns dos autismos, pouco produtivos, tendo em conta que, tanto em termos materiais, como dos respectivos contextos culturais, existem pontos de confluência e intersecção.
O capital europeu, neste âmbito, deriva de uma extensa tradição de investigação, tão antiga quanto o próprio estabelecimento da arqueologia, como disciplina científica; por outro lado, a quantidade e imponência dos monumentos europeus têm contribuído para a construção de um corpus considerável.
Do lado amazónico, uma das principais vantagens é precisamente a existência de um potencial muito significativo, no campo da etnologia e, sobretudo, da etnoarqueologia, mas igualmente a disponibilidade de monumentos muito complexos e particularmente bem conservados.
Espera-se, naturalmente, que de um diálogo empenhado resultem vantagens para os dois lados do “megalitismo atlântico”: só o gesto de atravessar fronteiras, muitas vezes mais psicológicas do que físicas, pode permitir ampliar as focagens, contrastar aspetos aparentemente avulsos, criar conhecimento.
Abstract:
Based on the comparison between the megaliths of Calçoene and the megalithic monuments of Europe, we intend to list the main similarities and differences, in a perspective focused on the dynamics of research and seeking the discussion of interpretative paradigms for the two relatively autonomous traditions of research. The assumed target is to outline compatible research strategies, overcoming some autism, always little productive, given that in both materials, as their cultural contexts, there are points of confluence and intersection.
The European capital, in part, stems from a long tradition of research, as old as the establishment of archeology as a scientific discipline; on the other hand, the number and magnificence of the monuments of Europe have contributed to the construction of a considerable corpus.
On Amazonia, one of the main advantages is the existence of a very significant potential in the field of ethnology and especially ethnoarchaeology, but also the availability of very complex and very well kept monuments.
We are, of course, committed to a dialogue, expecting benefits to both sides of the “Atlantic megalithism”: only the gesture of crossing borders, often more psychological than physical, can allow opening focuses, contrast apparently loose aspects, so creating knowledge.
1. Ever increasing circles
“The reconstruction of Amazonian prehistory raises issues of general theoretical interest for our understanding of the emergence of domestication, sedentism, and social stratification in several parts of the prehistoric world.” (Hornborg 2005: 1)

No admirável mundo velho do megalitismo mundial, os monumentos amazônicos constituem um tema bastante sugestivo: desconhecidos ilustres até recentemente, apesar de referenciados, pelo menos, desde os inícios do século XX (Goeldi 1905), só agora começam a ganhar o merecido destaque, graças aos trabalhos de prospecção, de escavação, de interpretação e de divulgação, de que têm sido objeto (Saldanha e Cabral 2008).
Comparados, à partida, com os exemplares de muitas outras regiões megalíticas de outros continentes, os blocos utilizados na construção dos monumentos amapaenses são de dimensões relativamente modestas; porém, a riqueza dos espólios que os acompanham e, de certo modo, os completam, assim como o grau de conservação dos conjuntos, estão, certamente, à altura dos melhores do mundo.
Isso sem mencionar, naturalmente, o riquíssimo contexto paisagístico que, hoje em dia, os enquadra.
É possível que alguns dos resultados das pesquisas em curso, na área megalítica de Calçoene – e não apenas nos megalitos propriamente ditos - ajudem a iluminar algumas zonas de sombra no estudo do megalitismo europeu. E, mutatis mutandis, é possível também que o conhecimento acumulado e filtrado, ao longo de séculos, com o estudo de milhares de monumentos europeus, apesar das distâncias e das diferenças, seja pertinente para a abordagem de certas questões locais.
Porém, neste momento, creio que pode ser útil - sem pretender ir mais além - elencar e começar a discutir, algumas das eventuais questões comuns, não apenas em termos puramente arqueográficos, mas também em termos interpretativos.
Como escolha metodológica e, até certo ponto, simbólica, adotarei uma perspetiva de base espacial, organizando a análise em círculos concêntricos; por limitações de espaço, este exercício será mais qualitativo e genérico do que quantitativo e específico; pretende-se apenas lançar temas para discussão, assentes nos dados, certamente, mas abertos e multivocais q.b.
Não escondo que a maior parte dos comentários é conotável com os pressupostos da chamada arqueologia interpretativa. Algumas das idéias podem ser, e são provavelmente, demasiado pessoais, mas não deixam de ser, espero, transmissíveis.

1. O primeiro círculo: o Céu
“...a concretização de um conhecimento, a transformação de algo tão efêmero como a observação da natureza em uma estrutura sólida e duradoura.” Saldanha e Cabral 2008: 35)

A etnoastronomia é, na Amazônia, um precioso aliado, no estudo do megalitismo.
O interesse no movimento cíclico dos astros e em alguns dos eventos mais conspícuos é uma realidade bem conhecida, em muitas culturas indígenas regionais (Magaña 1986, 1988).
Nesses contextos, destacam-se os eventos relacionados com os ciclos do Sol e da Lua.
Estamos, por um lado, no território dos mitos que desempenham, nessas culturas, um importante papel de “accounting for the things and events of the world, both terrestrial and celestial” (Carneiro 2009: 57); para além disso, não deixam de ser formas práticas de organizar atividades quotidianas, nomeadamente de caráter social e econômico.
Porém, parece razoável admitir que a aplicação dos conhecimentos astronômicos num monumento funerário só faz sentido no domínio do simbólico.
De resto, na perspetiva da arqueoastronomia cultural, os monumentos deixaram, há muito, de ser encarados como observatórios astronômicos: as observações que eles têm implícitas foram, naturalmente, feitas a montante e foram incorporadas nos sistemas de crenças dos construtores.
No Brasil, a arqueoastronomia focou-se, até recentemente, apenas nas representações astrais que estão presentes, de forma muito explícita, na arte rupestre. Outras abordagens, estranhamente, tardaram a chegar.
Em termos globais, no universo do megalitismo, as orientações azimutais têm sido o alvo da maior parte dos estudos arqueoastronómicos: os equinócios e os solstícios, no caso do Sol, ou as pausas maior e menor, mais a Lua Cheia de Primavera, no caso da Lua, determinaram a orientação de grande parte dos monumentos europeus, algumas vezes em combinação com aspectos específicos da paisagem terrestre.
Dois exemplos marcantes destas combinações, algo complexas, foram observados em dois dos monumentos mais famosos do megalitismo europeu: Stonehenge e Almendres.
No primeiro caso, a orientação solsticial da Avenida parece sobrepor-se a uma linha geológica natural (Parker-Pearson, np); no segundo, são os alinhamentos lunares (pausa maior) entre o recinto e o ponto mais destacado do horizonte oriental que se ajustam à linha de divisória das águas dos principais rios da região (Alvim 2006).
Em Calçoene, foram observadas, de forma bastante pioneira, algumas estruturas internas, com orientações clássicas, nomeadamente em função do nascer do Sol, no Solstício de Inverno; no futuro, seria interessante testar a hipótese de eventuais coincidências com os elementos nodais da paisagem terrestre.
Mas a principal novidade, em Calçoene, sem que se conheça nenhum outro caso análogo, é a possibilidade de a inclinação de algumas pedras ser intencional e corresponder aproximadamente ao ângulo aparente, descrito pelo Sol, na sua curva descendente, no dia menor do ano.
Talvez, com base nesta evidência, seja conveniente, rever alguns dos casos europeus em que, a priori, se interpretaram algumas inclinações como irrelevantes, simplesmente estruturais, ou resultantes de fenômenos tafonômicos.
Neste diálogo transatlântico, seria também, certamente, interessante que, em Calçoene, fossem ampliados os estudos arqueoastronômicos, considerando, nomeadamente, os ciclos da Lua.
Apesar de a escavação de AP-CA-18 ter sido intencionalmente limitada e, por isso, a planta do monumento poder vir a ser melhor definida, em trabalhos futuros, é provável que ela seja do mesmo tipo que a maior parte dos recintos megalíticos portugueses e franceses: não em círculo, mas em ferradura, aberta a nascente.

Fig. 1- Planta do monumento AP-CA-18

Fig. 2 - Plantas em ferradura ou semi-círculo, dos recintos megalíticos ibéricos

Essa é também, com mais ou menos variações, a planta e a respetiva orientação, da grande maioria dos dólmenes europeus. A disposição de espaços cerimoniais em ferradura (ou semicírculo) está bem documentada também na América do Norte, como é o caso dos altares dos Kere, no Novo México (Snead e Preucel 1999: 183), mas também na Amazônia (Heckenberger 2004; Zeidler 2008: 463).
Em última análise, convém ter em mente que “a forma de ferradura, ou de semi-círculo, corresponde a uma disposição básica do habitat humano, aplicada em tendas e abrigos desde o paleolítico e até mesmo na maneira com um grupo humano se dispõe à volta de uma fogueira (Binford 1991)” (Calado 2004: 147)
Trabalhos recentes, com uma forte base estatística, permitiram atribuir aos ciclos lunares (sobretudo a Lua Cheia de Primavera) a maioria das orientações genericamente a Nascente, mas com uma certa variação. Na verdade, a observação da Lua Cheia de Primavera (ou do Outono) é o único método, de tipo puramente fenomenológico, de controlar o equinócio (da Silva 2004; da Silva e Calado 2003).
O Sol e a Lua, formas circulares por excelência, descrevem trajetórias circulares, no espaço e no tempo.
Por último, convém anotar que os alinhamentos com certos pontos-chave na paisagem, apesar da monotonia aparente da topografia da região, de horizontes quase horizontais, podem, eventualmente, fazer parte da complexa teia de relações simbólicas, “capturada” nos megalitos amazônicos.
Esse é o tema do próximo ponto.

2. O segundo círculo: para cá do horizonte
“uma paisagem rica em lugares especiais” (Saldanha e Cabral 2008: 6)

Sem relevo destacado, a paisagem terrestre de Calçoene organiza-se obrigatoriamente, num primeiro zoom, mais aberto, em função da linha de costa; porém, esta é uma realidade muito flexível, prolongando-se sazonalmente até aos limites da chamada terra firme.
Ao contrário da Europa atlântica, onde floresceu um dos mais importantes focos megalíticos, o lado do mar confunde-se com o Nascente. Se este fato participou ou não na estruturação dos monumentos, como resultado desse potencial simbólico, é uma possibilidade em aberto; no megalitismo europeu, de dispersão marcadamente litoral, tudo indica que o mar esteve presente como um elemento da dimensão polissêmica dos megalitos (Scarre 2002).
Numa escala mais próxima, e com uma presença muito melhor definida, temos os igarapés. Na terra firme, onde os megalitos de Calçoene se implantam, para além das referências no horizonte vegetal, é nos detalhes dos igarapés que a paisagem se diferencia: as cachoeiras, os afloramentos rochosos, as confluências, os canyons, as curvas…
Atualmente, o monumento AP-CA-18 mantém uma forte relação visual com o igarapé adjacente, que, nesse tramo, descreve uma curva bastante acentuada.
No mapa de distribuição dos megalitos, na área de Calçoene, pode, aliás, observar-se, principalmente na parte meridional, uma implantação preferencial dos monumentos, nas proximidades das curvas mais angulosas dos igarapés.
Ora, as curvas dos rios parecem ter determinado, em muitas culturas diferentes, situações de excepcionalidade, que podem ter contribuído para escolha desses locais, na hora da instalação de estruturas cerimoniais.
Na Europa, o próprio Stonehenge – que, como se provou, recentemente, foi também um local de enterramento – articulava-se umbilicalmente, através de uma avenida, com o rio Avon, numa área onde este apresenta um curso marcadamente sinuoso (Parker Pearson np).
Outro dos mais famosos monumentos megalíticos europeus, Newgrange (que integra um cluster muito complexo e é considerado, pelos irlandeses, um dos símbolos da sua identidade cultural), localiza-se junto a uma curva do rio (o Boyne); na verdade, a toponímia local consolidou esse aspecto: a vila adjacente denomina-se precisamente Bru na Boyne (a Curva do Boyne).
Em Portugal, um dos maiores conjuntos de arte rupestre – no vale do rio Guadiana – apresenta claramente as maiores concentrações (e a maior diversidade) de gravuras, junto das duas mais notáveis curvas do rio: o Moinho da Volta e o Moinho da Retorta (Calado, 2003).
Fig. 3 - Concentrações de arte rupestre junto das três principais curvas do rio, neste troço.

Na verdade, essa preferência paisagística observa-se igualmente no Norte da América do Sul: na Amazônia equatoriana, foi igualmente em frente de um local denominado Curva del Upano, onde esse rio descreve uma inflexão muito notória, que se construiu um dos mais notáveis conjuntos de montículos pré-colombianos (Salazar 2008: 267).

Fig. 4 - A Curva del Upano e os monumentos de terra associados.

Também os tesos do Camutins, na ilha de Marajó, aglomeram-se, num padrão muito claro, junto da curva mais acentuada desse rio (Schaan 2006).

Fig. 5 - Concentração de tesos cerimoniais, junto da curva maior do Camutins (Marajó) (Schaan 2006).

Por outro lado, num levantamento toponímico efetuado num troço do rio Negro, de “46 names, 12 refer to places where specific kinds of game are abundant, 17 to particular events in the lives of elder Suya, and 10 to geographical peculiarities such as river bends and rapids” (Hornborg 2005: 2).
Uma outra possibilidade a explorar, com base no megalitismo europeu, é a de as próprias pedras representarem metaforicamente a paisagem envolvente, ou aquela de onde provêm. Segundo Tim Darvill, “Stonehenge seems to have been built as a representation of a reality that exists in the structure and arrangement of a particular and very real place” (Darvill 2009: 48), interpretação na mesma linha de uma outra avançada, há alguns anos, a propósito de megalitos portugueses da região de Évora (Kalb 1996).

3. O terceiro círculo
3.1.O caminho das pedras
À escala do sítio, abstraindo da paisagem que o envolve, encontramos, como já referi, um modelo de planta subcircular, eventualmente aberto, com fortes analogias no megalitismo europeu.
A relação simbólica entre as plantas desses monumentos e as das cabanas tem sido recorrentemente invocada, sobretudo em contextos funerários. As moradas dos antepassados replicariam, nessa ótica, as moradas dos vivos.
No principal monumento de Calçoene – e aparentemente na maioria dos outros – existe, para além da parte visível, exterior, uma “construção” subterrânea, cuja relação global com o recinto de pedras fincadas, se desconhece ainda. Desconhece-se inclusive a seqüência: o conjunto foi concebido como um todo, ou foi, pelo contrário, sendo acrescentado por etapas? Esta última possibilidade é sugerida pelos escavadores que, em paralelo, obtiveram dados inequívocos de episódios de reutilização das estruturas subterrâneas (Saldanha e Cabral 2008).
Neste aspecto, convém realçar que o caráter cumulativo de muitos dos grandes sítios megalíticos europeus, é hoje um dado assente: Stonehenge ou os Almendres são palimpsestos, com longas histórias de construção e reconstrução.
Do ponto de vista das tipologias do megalitismo – com uma diversidade muito elevada – AP-CA-18 seria classificável, à primeira vista, como um recinto megalítico, composto por menires. A forma achatada dos blocos, não sendo a mais recorrente, tem, na Europa, alguns paralelos regionais: os melhor conhecidos são, por exemplo, Stenness, na Escócia (Scarre 2009: 14), ou Montneuf, na Bretanha (Lecerf 1999); a forma dos blocos relaciona-se, antes de mais, com o tipo de matéria-prima disponível, mas também com um conceito subjacente, em que as “pedras rudes” evocam o mundo natural.
Em Calçoene, alguns blocos foram apenas ligeiramente afeiçoados, enquanto outros talvez nem isso; esta intervenção mínima, ou mesmo nula, sobre a fisionomia natural dos blocos, é uma das características mais recorrentes das arquiteturas megalíticas.
Nas palavras de Chris Scarre, “the use of large, generally unshaped stones is indeed no ‘primitive’ architecture but the consequence of specific choice and tradition” (Scarre 2009: 4).
Tendo, como base empírica, a realidade americana, Saunders afirma mesmo que “the geological components of cultural landscapes were not inanimate physical matter, but rather were imbued with cosmological significance” (Saunders 2004: 123); neste sentido, existem motivos para assumir que os blocos poderiam já ter adquirido valor simbólico especial, antes de serem selecionados como megalitos. A identificação das fontes de matéria-prima, no caso amapaense, pode abrir, eventualmente, algumas pistas sobre essa possibilidade.
Outro tema com algum destaque no estudo do megalitismo europeu é a relação entre megalitos e arte rupestre, com diversas situações identificadas: coexistência ou complementaridade espacial e, sobretudo, casos em que, na construção dos megalitos, foram “reutilizados” blocos com gravuras.
No Amapá, a arte rupestre (pinturas) está presente, de forma inequívoca, em Maracá, num contexto geológico completamente distinto (arenitos) (Pereira 2004).
Porém, nos granitos da Amazônia oriental, existem muitos casos conhecidos com gravuras, quer em abrigos, quer nas rochas dos leitos dos rios.
Em Ferreira Gomes, a Sul de Calçoene, conhece-se apenas um caso, a Pedra do Índio, com gravuras num afloramento granítico; os temas dominantes são, decididamente, os círculos concêntricos e as espirais, e, aparentemente, “não se enquadram na Tradição Amazônia” (Pereira 2004: 376).

Fig. 6 - Círculos concêntricos da Pedra do Índio (Ferreira Gomes AP)
Fig. 7 - Potes em poços
Fig. 8 - A quadratura do semi-círculo (vasilha destruída por poço moderno, no povoado próximo do AP-CA-18)


6. O sexto círculo: ossos do ofício
No âmago do AP-CA-18, estão os ossos dos personagens enterrados cujos “fragmentos tinham várias marcas da ação de fogo, indicando sua cremação”. (Saldanha e Cabral 2008: 16).
É possível que, traduzindo algumas assimetrias sociais, os defuntos fossem, de uma forma ou de outra, uma fração mínima da sociedade que contruiu os megalitos; mas a seleção dos ossos depositados no monumento pode ser muito posterior à morte dos personagens se, como se pensa, a cremação era precedida pelo descarnamento. E, por enquanto, desconhece-se quanto tempo mediou entre uma operação e a outra.
Em qualquer caso, “human bones are powerful symbols. The bones of saints have been preserved in reliquaries in European cathedrals for centuries.“ (Young and Fowler 2000: 152); apenas guardados em locais muito especiais, de forma inamovível, ou circulando, em determinadas circunstâncias, entre os vivos, os ossos humanos valem muito para além do seu valor facial.
Moradas da alma dos mortos ou apenas mnemónicas para os vivos, os ossos foram, através de rituais elaborados, guardados como tesouros escondidos.
Claro que, na perspetiva do arqueólogo, os ossos são igualmente preciosos informantes (Zimmerman 1994:219).
Na verdade, para além dos dados da antropologia física ou das datações, os ossos, em contexto funerário, cristalizam e transportam as crenças e as acções dos vivos em relação a eles.
No caso do megalitismo funerário, é interessante observar que “stone and bone are conceptually linked in webs of symbolic meaning, because they share physical properties of hardness and durability” Boivin 2004: 16.
Bones and stones, like diamonds, are forever…

7. O sétimo círculo: natureza e cultura
Como numa matrioska russa, no monumento principal de Calçoene, cada círculo contém outros círculos. Em todos eles, de algum modo, parece projectar-se algum antropomorfismo. O Homem (e a Mulher) como medida de todas as coisas.
Este dispositivo espacial faz lembrar o Buracão do Laranjal, perto de Maracá, um sítio com pinturas rupestres: os círculos ocorrem aí, numa densidade notável, sobretudo nos tectos dos abrigos, sugerindo uma eventual dimensão “astronómica” (entre outras) para esse símbolo recorrente.

Fig. 9– Círculos concêntricos, no teto de um dos abrigos do Buracão do Laranjal.


Mas, também no Buracão, os círculos concêntricos contracenam com figuras humanas, localizadas preferencialmente nas paredes verticais dos abrigos.
De resto, os círculos concêntricos, ou as espirais, são abundantes na arte rupestre amazónica (Pereira 2001, 2003) e, como se sabe, são igualmente um dos grandes temas da arte rupestre europeia pós-paleolítica, sobretudo nas Ilhas britânicas e NW da Península Ibérica. Frequentemente, gravadas nos próprios megalitos.
Todo o monumento megalítico é uma intervenção cultural, uma transfiguração da Natureza. No Velho Mundo, os megalitos surgiram em paralelo com a neolitização: sedentarização, agricultura, cerâmica, complexificação social, crescimento demográfico, complexificação social, são, numa ordem bastante aleatória, elementos que fazem parte, na sua génese, do “pacote megalítico”
Na Europa ocidental, em particular, a introdução da agricultura (e da pastorícia) parece ter marcado uma época de ruptura, uma enorme mudança civilizacional, com evidências também em termos de expressão simbólica. A figura humana irrompe, triunfante, no Neolítico, depois de ter sido apenas vestigial e transfigurada, durante o Paleolítico (a época dos caçadores-recoletores).
Os touros e os cavalos foram superados.
Domesticaram-se as paisagens. Construíram-se monumentos.
Porém, este cenário, em pinceladas rápidas, dificilmente encaixa na moldura amazónica (Proux 2008: 578; Rostain 2008: 284).
Natureza e cultura esbatem-se; há mais tons de cinza, entre o preto e o branco.
Entre os humanos e o resto, as distâncias parecem ser mais curtas.
A arte rupestre amazónica tem antropomorfos, zoomorfos e, para (con) fundir ainda mais o filme, muitas figuras que, para chamar-lhes alguma coisa, se tem chamado de biomorfas. O mesmo acontece na decoração das cerâmicas.
Na prática, o desmatamento, na Amazónia em geral, nunca deve tido a expressão dramática da Europa neolítica.
Lá, o machado de pedra polida – o melhor indicador arqueológico da mutilação das paisagens - tornou-se num ícone: presente, em doses por vezes maciças, nas oferendas funerárias; presente na arte megalítica; abundante nos sítios de habitação.
No fundo do poço1 do sítio AP-CA-18, foi encontrada uma lâmina de machado de pedra verde, aparentemente reciclada.
Na arte rupestre amazónica, os machados aparecem representados, por exemplo, na Ilha dos Martírios, na região Tocantins-Araguaia (Pereira 2003: 114), mas, obviamente, não são um tema muito representativo.
A “ideologia neolítica” está lá, com muitos elementos comuns (os antropomorfos, os círculos concêntricos e as espirais, os machados, os megalitos, as cerâmicas, as construções em terra…) mas, no mínimo, muito diluída.
Faltou a domesticação de animais.
De resto, se é certo que a Europa, na fúria da revolução neolítica, domesticou até os touros e os cavalos, não consta que os índios tenham alguma vez domesticado a cobra grande e a onça… ou mesmo as antas, as pacas ou os porcos do mato.
Ëmetanïmpë, os Transformados.

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terça-feira, 11 de agosto de 2009

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Aproveitando a visita de arqueólogos ao Amapá

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Em um estado ainda carente de profissionais, a visita do colega português Luis Gonçalves tornou-se um ótimo pretexto para juntarmos os interessados e conversamos sobre arqueologia.
E o local, a bela Fortaleza de São José, é certamente inspirador.
O encontro será no dia 08 de Julho, a partir da 17:30.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Megalitismo Amazonas-Caribe

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Desenho feito por crianças no chão (aldeia da Missão dos Tiriyós)


clique na imagem

segunda-feira, 4 de maio de 2009

workshop

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sobre musealização de sítios pré-históricos amazônicos